ENCHENTES NO RS E VOLUNTARIADO: QUANDO É PRECISO SABER SAIR DE CENA

Especialista fala sobre o sentimento de culpa e impotência de voluntários que ainda não conseguem voltar à sua rotina

A maior tragédia climática que já assolou o Rio Grande do Sul deixou marcas que ainda podem ser vistas e sentidas. As enchentes de maio tiraram vidas e destruíram histórias de muitos gaúchos. Mas, graças a uma intensa rede de cooperação e de voluntariado, as dores foram amenizadas, e ainda são. Pessoas que deixaram seus afazeres, suas próprias famílias e trabalho para ajudar a centenas de desabrigados, ainda se dedicam a uma tarefa cujo valor é impossível mensurar.

Só que essa disponibilidade, esse desejo de ajudar ao próximo, também tem um preço para muito além do financeiro. O custo emocional de se envolver no voluntariado e de entender a hora, e a necessidade, de se afastar pode ser muito maior do que se imagina. Sentimentos de culpa e de impotência podem atingir em cheio quem desenvolveu empatia e compaixão, por acreditar "não ser digno de estar bem".

Antes de seguir é importante entender que a ação de voluntariado é uma ação corajosa, importante e imprescindível de uma comunidade. Mostra compaixão, o sentimento de coletividade, a maturidade de dividir as coisas que se tem, dividir seu tempo, seu conhecimento, seus bens para o bem comum. Isto é maturidade social. E, primeiro, devemos entender que ser voluntário, num momento de tragédia, como o que os gaúchos vivenciaram, é diferente do que viver em qualquer outra situação, como explica a psicóloga Andréa Fidelis. É ela que nos aponta a busca por soluções internas de conflito que muitas pessoas que atuaram, ou seguem atuando, como voluntárias na tragédia do RS sentem.

UMA CULPA QUE SEMPRE ESTEVE ALI

Assim, segundo ela, olhar de volta para sua rotina, para as suas responsabilidades e sentir culpa, de acordo com a psicóloga sinaliza um problema que já está instalado há mais tempo. No entanto, a compaixão e a empatia não são responsáveis pela culpa. "A culpa vem de alguém que naturalmente já se sente culpada e existem alguns mecanismos que são reforçados aí", comenta a psicóloga.

Segundo ela, toda emoção dentro de nós, significa algo a nosso respeito e ela revela um verdade sobre nós mesmos e não sobre o outro. Quando uma pessoa que atuou como voluntário e viu a realidade tão de perto se sente culpada por estar bem, mostra que esse é um problema para além do voluntariado. "Pode ser uma pessoa que se sente culpada por estar bem, por ter dinheiro, ter bons relacionamentos ou por ter uma casa. Ou seja, alguém que já carrega isso há muito mais tempo", explica. Geralmente, diz, se trata de alguém que, quando criança precisou abrir mão dos seus desejos em prol de uma outra pessoa", afirma Andréa, ao ressaltar que, assim, a culpa sempre vai trazer um elemento que é da pessoa e não da situação, e que fica exagerado, exacerbado no momento do voluntariado.

A dificuldade de voltar à sua vida normal, de voltar a trabalhar e deixar de ajudar, acontece porque o culpado acredita no sucesso de sua ação se ela der tudo o que ela tem, não pode estar feliz enquanto os outros não estão felizes. Mas, reforça a psicóloga, essa condição mostra o quão difícil é para o indivíduo lidar com a frustração e com a impotência. "Só que não é nossa função resolver o problema dos outros, ser voluntário é apoiar num momento de fragilidade, mas a gente não é imprescindível. É diferente: ajudar, eu faço pelo outro, e apoiar, eu ajudo o outro a caminhar", considera. Por isso, num primeiro momento de tragédia, os voluntários ajudam, porque as pessoas nao têm o que fazer por elas mesmas, estão em situação muito debilitante, depois, é preciso passar para o momento de apoiar, deixar que elas façam o que têm de fazer com seu apoio e em seguida, aos poucos, sair de cena. "O voluntário que tem culpa não consegue sair de cena, por isso ele precisa buscar apoio terapêutico, porque não se trata somente deste momento", conclui.

E aqui, Andrea destaca a importância do trabalho de terapia que desenvolve. Tudo aquilo que não é visto não tem como ser consertado, ela ilustra. E usa a imagem de um vazamento em uma casa. A parede úmida sinaliza um problema mas a pessoa não tem ideia de onde vem isso. Assim, primeiro ela precisa identificar a origem do vazamento que está estragando a parede. A terapia, segundo Andréa, é exatamente isso. A terapia vai ajudar a pessoa a olhar a origem da dor e arrumar as partes de sua vida que não estão bem.
"Então nada pode ser feito se a gente não olha para a gente e não descobre a origem das nossas dores, preocupações, ansiedades, até mesmo nosso alto índice de compaixão e de empatia que pode estar nos prejudicando e deixando a gente de olhar para a nossa vida. A terapia sempre é um caminho de autoconhecimento para que a gente possa olhar para nós e poder cuidar de nós de uma forma positiva", complementa.

VIVER O LUTO

Andréa salienta que todos os gaúchos vivem e vão viver por um tempo ainda o luto, todos estarão, em algum grau de transtorno emocional. Todos se depararam com a fragilidade e com a impotência humanas. "A inteligência espiritual faz isso conosco, faz a gente lembrar o que realmente é importante, o que que realmente eu preciso fazer para que a minha vida tenha sentido e tenha propósito. Não na ajuda dos outros, mas na minha própria vida. E todos nós vamos estar mais sensíveis a pensar na dimensão não material da vida. E é assim que a gente tem que pensar", ressalta.

No entanto, afirma, é importante saber o limite, pois quando a pessoa não consegue mais voltar à sua vida e à sua realidade, é preciso entender que essa vida, antes, já estava com alguma questão para a qual era preciso ter olhado. "Ninguém ajuda o outro estando mal", pontua a psicóloga.

A cabeleireira Rita D´Ávila Bernardes precisou administrar muitas questões internas diante de todo o cenário de catástrofe no estado. Voluntária há mais de duas décadas por meio do grupo Amigos na Fé, da zona sul de Porto Alegre, ela atuou na montagem e distribuição de kits de higiene, limpeza e roupas para desabrigados, além da organização de mais de meia tonelada de alimentos em cestas básicas. Depois de mais de 20 dias de trabalho voluntário ininterrupto, sentiu muita dificuldade em retornar à rotina de trabalho e vida pessoal. " Eu queria poder fazer mais. Me sentia culpada em voltar ao trabalho e não poder mais estar tão disponível como antes. Muitas vezes, senti como se meu trabalho fosse supérfluo diante de tantas necessidades básicas em falta para aquelas pessoas. Mas entendi que minhas clientes precisavam de nós porque também estavam abaladas. E nosso trabalho fez diferença nelas, que da mesma forma se sentiam culpadas em pensarem em se arrumar. Complexo!", desabafa a voluntária.

Diante disso, Andréia Fidelis reforça: precisamos também começar a olhar para nós e lembrar que todos fomos afetados, aqueles que foram voluntários, aqueles que não foram voluntários, aqueles que sofreram grandes perdas ou sofreram poucas perdas, não importa o que aconteceu, isso foi uma experiência coletiva, uma experiência coletiva de dor e sofrimento que todos nós gaúchos que testemunhamos isso pela televisão, pelo vizinho, pelos familiares.