ARTIGO | O inseto de Kafka dentro da panela brasileira

O que Kafka mostra sobre a nossa luta diária pela sobrevivência

Por Tânia Lins

No ônibus, incomodada com o sacolejar do veículo, ela lembrou-se de ter ouvido algo no jornal vespertino, entre um gole e outro de café, sobre as ruas esburacadas. Logo em seguida, desligou a TV, senão chegaria atrasada ao escritório. Conferiu o celular, enquanto pensava sobre o que cozinharia para o jantar. A mulher morava sozinha, e daí? Também precisava se alimentar. Talvez fizesse um macarrão instantâneo, como assistia sempre nos seriados coreanos; contudo, os resultados dos exames de sangue vieram-lhe à mente, e ela decidiu que era preciso iniciar uma reeducação alimentar, ainda que providenciar o jantar em apenas três minutos fosse uma boa saída para o cansaço acumulado do dia. “Se ao menos frutas e legumes fossem mais baratos...”, divagou.

Distraída, sorriu ao imaginar a água quentinha do chuveiro, mas a sensação foi interrompida ao lembrar-se de que deveria reduzir o tempo no banho, culpa daquele vídeo no TikTok, que alertava para a escassez de água no planeta nos próximos dez ou quinze anos... não sem lembrava mais. Escassez mesmo era de dinheiro, com um salário que era engolido pela inflação. Mas não podia reclamar; ao menos, ainda tinha um emprego.

Ao chegar ao prédio, rapidamente apertou o botão para chamar o elevador. “Que diabos!”, repreendeu-se. Deveria subir as escadas, como bem orientou o médico maratonista do programa de notícias dominical. De fato, cuidar da saúde era importante, porém economizar energia fazia mais bem ao bolso que ao coração. Se a conta subisse, era bem capaz de aumentarem o condomínio. Melhor nem pensar nisso.

Como anotação mental, decidiu que iniciaria o exercício no dia seguinte, mas logo seu pensamento voou para a placa de sinalização sobre a importância de verificar se o elevador estava realmente no andar. Leu mentalmente: “Verifique se o mesmo se encontra no andar”. Aquilo não podia estar certo. Como era mesmo a regra? Não se lembrava, porém tinha quase certeza de que a frase (ou seria oração?) estava errada, apesar de nunca ter sido boa aluna em português. Já em matemática, essa, sim, era sua especialidade, afinal, fazia malabarismos para o salário chegar ao fim do mês.

Apesar da advertência, entrou no elevador sem prestar muita atenção e apertou o botão luminoso com o número 6, enquanto lia rapidamente sobre os altos índices de desemprego no monitor digital. Desceu no seu andar. Abriu a porta, tirou os sapatos e dirigiu-se para a cozinha. Decidiu que cozinharia músculo e faria uma sopa. Ao pegar a panela de pressão, deparou-se com algo vivo no interior do recipiente. Cruz-credo! Seria uma barata? Não tinha certeza! Rapidamente, a mulher fechou a tampa e levou a panela para a área de serviço anexa à cozinha. Essa agora! Bem no dia em que iniciaria uma boa alimentação surgira aquele imprevisto. E como se livraria daquele bicho asqueroso?

Decidiu comer pão com margarina. Sim, a dieta saudável teria de esperar, mas quanto tempo “aquilo” aguentaria sem ar? E, depois, teria coragem de usar a panela novamente? Lavaria com água sanitária, e se a substância impregnasse no inox e lhe causasse algum dano? Também poderia chamar um vizinho para ajudá-la a dar cabo do inseto. Já era tarde, e talvez a esposa do homem pudesse achar ruim. Não, ela não seria responsável pela separação de um casal. “Melhor esperar”, refletiu a mulher enquanto se dirigia ao banheiro. Durante o rápido banho, teve uma ideia. Poderia colocar a panela no fogo, mas seria muita maldade com um ser vivo! Já deitada em sua cama, continuou pensando no que fazer, até que adormeceu sem encontrar uma solução.

Então, sonhou que era Gregor Samsa, o caixeiro-viajante da novela A metamorfose, de autoria de Franz Kafka. Como o personagem, ela havia se transformado em um inseto. Em choque, ademais da aparência monstruosa, sua maior preocupação era como trabalharia naquelas condições. E se perdesse o emprego? O que seria dela e da família que ajudava, enviando dinheiro todo mês para as despesas dos pais já idosos?

Tal como Gregor Samsa, a maioria de nós trava uma luta diária pela sobrevivência. Presos aos dilemas cotidianos, seguimos sem notar as mudanças que ocorrem em nosso interior e se refletem em nosso exterior. E, assim, cansados e apáticos, continuamos nessa angustiante situação.

Na obra de ficção, publicada em 1915, o protagonista abandona seus sonhos para sustentar a si e a família, calando seus desejos, silenciando suas vontades, algo tão alinhado à realidade, quando as tentativas de adaptação ao modelo vigente nos frustram. Sem dúvida, o autor nos traz um alerta ao narrar cenas surreais que se perdem diante das preocupações existenciais do personagem. Alguma coincidência com nosso mundo atual, quando fatos estarrecedores ocorrem diante de nossos olhos sem nos causar indignação, quando a fome do outro não dói em nosso estômago, quando o frio do sem-teto não gela nossos ossos?

O fato de um homem se transformar em um inseto é o único ponto “mágico” da trama, que segue com um realismo impressionante, fruto talvez da época em que foi publicada: Primeira Guerra Mundial. Na narrativa, Gregor Samsa recebe os cuidados da família, que o vê como um ser que precisa apenas de comida e um espaço para ficar. Vazio de qualquer esperança e forças para mudar – alguma semelhança com a vida real? –, ele simplesmente aceita seu destino como algo irreversível. Nesta obra em especial, Kafka explora o existencialismo ao utilizar uma alegoria para ilustrar como nos sentimos inadequados, solitários, vivendo sem perspectiva e sobrevivendo de migalhas (literais e figuradas).

O pavor de se metamorfosear em inseto fez a mulher despertar, vendo no sonho um alerta. E essa não é a função também da literatura? Despertar, tirar da inércia, ao causar emoções singulares e inquietantes no leitor?

Já desperta, pegou na mesa de cabeceira um exemplar de A metamorfose, que comprara havia poucas semanas, e correu os olhos pela nota do editor, que advertia os leitores para o fato de o autor nunca ter usado o termo “barata”, algo criado somente no imaginário popular, que não consegue conceber algo mais nojento. Ela, como na história, também não sabia ao certo o que estava trancado na panela. Seria seguro usá-la novamente? E se pegasse alguma doença? Já se imaginou com a pele cascuda, com anteninhas e asas. Não havia tempo a perder. Resoluta, seguiu até a cozinha. Encostou a panela no ouvido, na tentativa de ouvir algum ruído, mas não deveria arriscar. Rapidamente, decidiu dar outro fim ao dinheiro das horas extras que estava guardando para aquela viagem tão desejada. Então, jogou a panela fora e foi trocar de roupa; já estava atrasada para o trabalho.



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