SALA DA TEACHER DAIA | Apegar-se à vida: uma urgência

"Parece que perdemos a capacidade de nos afeiçoar, de nutrir afeto e - pior ainda - de estimar algo ou alguém. Coisas são descartáveis, pessoas também"

Por Daiana Souza*


Apego. A-pe-go. Sentimento de afeição, afeto e estima. Fui em busca do significado dessa palavra, que parece em desuso nos nossos tempos de relações líquidas e (des) apegadas. Pessoas terminam relacionamentos por mensagens de texto. Bloqueiam contatos indesejados. Não há mais a necessidade de olhar nos olhos do interlocutor e dizer o que se pensa, o que se sente. A tecnologia nos oferece “emojis” para expressar o que sentimos.


É a praticidade em seu grau máximo. Parece que perdemos a capacidade de nos afeiçoar, de nutrir afeto e - pior ainda - de estimar algo ou alguém. Coisas são descartáveis, pessoas também. Por isso que bloqueio o contato no Whatsapp: descarto o que não serve mais. Mas o que esse comportamento mostra do que somos atualmente? E por que falar sobre o apego no mês de setembro?

Em 2018/2019 trabalhei como voluntária no CVV - Centro de Valorização da Vida, que é uma organização sem fins lucrativos extremamente atuante na prevenção do suicídio. Posso dizer que foi uma das experiências mais marcantes da minha vida, pois aprendi a escutar as pessoas de uma maneira muito diferente: através da escuta ativa. Depois de um longo curso preparatório, nos habilitamos a atender telefonemas de pessoas por todo o país, que ligam para o 188 em busca de alguém que possa apenas escutar o que elas têm para dizer.

Desabafos, tristezas, papo do dia a dia... pude escutar de tudo a cada telefonema atendido. E em algumas ligações alguém relatava sua vontade de se matar. Pedia ajuda, pois no fundo não queria. Mas já não sabia mais o que fazer com aquela dor enorme que a consumia. Neste momento o processo de escuta ativa se fazia presente: não tentava convencer a pessoa a desistir, ou dizia que tudo ficaria bem. Simplesmente dizia que eu estava ali para ouvir o que ela queria dizer e que não a deixaria sozinha. Durante os relatos, percebia que a pessoa não queria se matar, mas que queria ser ouvida de verdade. A escuta ativa facilita o desabafo de quem precisa falar, mas por várias razões não consegue.

E o CVV existe para isso: ser um ombro - ou ouvido - amigo para quem apenas quer conversar. O anonimato entre voluntário e quem liga facilita a conversa, que pode levar horas a fio. O CVV acredita que pessoas que querem morrer através do suicídio podem mudar de ideia se puderem falar sobre o que sentem. Apenas falar e sentir que estão sendo ouvidas. E o mês de setembro é chamado de Setembro Amarelo, o mês em que o assunto - ainda grande tabu - ganha holofotes para ser debatido e desmistificado. No Brasil uma pessoa morre por suicídio a cada 45 minutos e o índice é muito alto entre jovens de 15 e 29 anos. E segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde) mais pessoas morrem como resultado do suicídio do que HIV, malária ou câncer de mama, guerras e homicídios.

Será que isso nos aponta para o desapego à vida, de um modo geral? Uma desesperança global, que mostra a descrença das pessoas diante das tantas frustrações que permeiam nossa trajetória? Não há mais como se apegar a um objetivo, à esperança de dias melhores? E o que dizer do psiquiatra Viktor Frankl, que sobreviveu ao Holocausto na Segunda Guerra Mundial, passando por coisas terríveis dentro de campos de concentração? No livro Em Busca de Sentido, publicado pela primeira vez em 1946, Frankl narra sua história de sobrevivente do Regime Nazista e como ele conseguiu se manter de pé diante de tantas atrocidades. Frankl diz que o homem precisa de um sentido para viver e suportar qualquer sofrimento.

Talvez aí esteja a reflexão que precisamos fazer: precisamos nos apegar ao que nos dá sentido à vida. Se nossos jovens são a maioria em mortes por suicídio, são eles que precisam ser ouvidos de verdade, sem julgamentos ou frases como “isso é frescura” ou “você não sabe o que quer da vida”. Podemos fazer isso dentro da escola. Aliás, já fazemos de maneira informal: quem não teve um professor confidente em sua vida escolar?

Às vezes conseguimos criar um vínculo melhor com nossos professores, pois percebemos que eles nos escutam, de fato. Nos orientam a buscar ajuda. Nos dão o ombro que precisamos. Mas o melhor mesmo é iniciar a escuta ativa dentro de casa. Ao escutar sem julgamentos, apenas para ajudar no desabafo, podemos ajudar a pessoa a REapegar-se à vida, ao que dá sentido à sua existência. Quando nos apegarmos ao que faz nossa vida valer a pena, conseguiremos fazer com que não desistamos de viver.

*Publicitária e professora de inglês. Daiana Souza escreve quinzenalmente neste espaço. Tem alguma dúvida, comentário ou sugestão a respeito do tema? Utilize os espaços abaixo para comentários